sábado, 1 de novembro de 2014

Estrampalhar

Estrampalhar_Palavras de que eu gosto_Rita Cortez Pinto



#10: ESTRAMPALHAR


O som diz tudo: estrampalhar não é bem estragar; é só desarrumar, desfazer, baralhar. Oiço esta palavra e lembro-me logo da minha irmã Paula a dar cabo dos jogos quando começava a apanhar seca: uma torre de legos, um jogo de cartas, as peças do Monopólio, os dados de póquer, as letras do Scrabble – seja o que for, vai tudo à frente. E não importa se os outros estavam saltitantes de entusiasmo, não interessa se o jogo é a cifrões ou a feijões: quando a Paula está farta, toca a estrampalhar tudo. Mãozinhas do demo, com intolerância ao tédio, implacáveis a semear o caos em décimas de segundo.

E se eu estivesse a ganhar? Irritava-me toda, ralhava, gritava, esperneava, fulminava-a com o meu olhar mortífero número três – cheguei mesmo a assentar-lhe um estrepitante calduço (sim, que isso de ser tolerante com os intolerantes é muito bonito com meia dúzia de Lexotans no bucho, caso contrário fica difícil). Mas não havia volta a dar: o estrago estava feito. A Paula estrampalhou, o jogo acabou. Ponto final parágrafo travessão. Não, bastão. Ou, como nos filmes, taco de basebol.

E quem estrampalha é o quê? Estrampalhuças. Eu não sou estrampalhuças por natureza, mas aprendi a lidar melhor com quem é. Desde o episódio do calduço, e para evitar medidas mais radicais do tipo apertar o gasganete, antes de começar a trepar paredes e a hiperventilar, inspiro e expiro sete vezes e acabo por mandar a raiva sair discretamente pela porta dos fundos. Tudo para poupar a saudinha a tão afoita criatura que decidiu boicotar sem dó nem piedade qualquer coisa de que eu estava a gostar.

A minha irmã sabia como deixar-me de cabelos em pé. Mas com a sua provocação assumida (subversão a bem da nação) também me ensinou a perder. Ou a deixar cair. A fazer o pino dentro da cabeça em momentos-limite, numa espécie de treino de resignação por via do riso: o método consiste em fazer zoom out, vermo-nos de fora e rirmo-nos da situação toda quando ela é demasiado parva e insignificante para ser levada a sério.

Quando não dá para fazer marcha-atrás, que remédio senão relativizar e aceitar o inevitável: abanar a cabeça, encolher os ombros e depois desligar o botão e siga para bingo, para-a-frente-é-que-é-Lisboa. A vida é demasiado curta para gastar cordel a amarrar o burrinho.

Texto de Catarina Sacramento
Ilustração de Rita Cortez Pinto
(Publicado a 30 Outubro 2014)

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