domingo, 21 de julho de 2013

A rainha das rãs não pode molhar os pés - Davide Cali e Marco Somà

 

Pode ser uma fábula sobre o poder, sobre a aparência, sobre o que é a verdade e sobre a legitimação. Por outras palavras, A Rainha das Rãs não Pode Molhar os Pés é uma história, que começa duas vezes, de uma rã que num mergulho ressurge à superfície com uma coroa na cabeça.
 
Como sempre numa situação desconhecida e imprevista, há quem se afirme conhecedor das regras, e a rã passa a viver isolada e servida por todas as outras, que a devem servir a si e ao grupo de conselheiras que tão bem a rodeia. Da igualdade amigável que reinava, com tempo para o lazer, as restantes rãs passam ao tormento da escravidão, trabalhando sem parar na caça de moscas para alimentar aquelas que se auto-proclamaram ilustres mentores da rainha.
 
Tudo muda, porque também é assim a história, e assim a vida. Por ironia, ou talvez não, o ciclo fecha-se por causa de um diálogo que levará a digníssima rainha a aceitar o repto das suas subditas: num espectáculo de mergulho, será ela a última a saltar. Se no mergulho inaugural, a rã emerge com uma coroa na cabeça, no mergulho final, a coroa regressa ao fundo do lago e a rã retorna novamente plebeia. A ordem e a democracia restabelece-se, e o anel de noivado regressa ao dedo da menina enamorada.
 

 
Davide Cali já provou ser um escritor aforista, irónico, satírico. Da retórica, conhecemos-lhe o paralelismo, a enumeração, a inversão, a cadência equilibrada, a elipse, a metáfora, a metonímia. Agora, reconhecemos-lhe o domínio do paradigma da narração tradicional e a sua hábil reescrita ao serviço de um tema com vários níveis de leitura, como aliás apraz à literatura.
As ilustrações de Marco Somà conferem ao livro um ambiente vintage, com candeeiros arte nova e vestuário típico do início do séc. XX. A elegância das rãs segue a preceito, num quadro de sépias, verdes secos e rosas velhos, mui dignos de tão elegante nobreza.
A composição não se queda estática, apesar dos detalhes do traço mais clássico e figurativo do ilustrador. Afinal, todo o equilíbrio daquela comunidade depende de um ritmo ondulante entre a acção e a inacção, o deleite e o movimento, num lago que se apresenta sempre calmo o suficiente para oferecer estabilidade às folhas que servem de casa a tão selectas rãs.
Esta edição original da Bruaá é um exemplo de como os livros que aparentemente não espantam pela ruptura do texto, da imagem ou do grafismo encerram a mesma ou uma maior qualidade que outros que tão desesperadamente a procuram, muitas vezes sem sucesso.
Ler não implica apenas traduzir o sentido de um livro e sim relacioná-lo com o seu e o nosso património literário, social, histórico e estético. Não nos esqueçamos pois que a história da literatura infantil está plena de obras assim: discretas e consistentes.


 Andreia Brites | http://obichodoslivros.blogspot.pt/

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